Acende outro cigarro, o maço um pouco mais vazio. A facilidade com que podia tirar o cigarro do maço. Queria que também tivesse pelo menos um problema a menos nas costas. Mas as coisas não funcionam desse jeito, era o que ele vivia dizendo pra ela.
A luz vermelha do sinal de pedestres começava a piscar sempre que ela pisava na faixa. Não foi diferente dessa vez. Mas não apressou o passo; que passem por cima de mim se quiserem. Já faz um tempo que eu deixei de me importar.
Subiu na calçada, começou a descer a rua. Não sabia o nome dela, não fazia diferença. Era mais uma daquelas calçadas cheias de bares de ambos os lados, de um dos tantos bairros boêmios daquela cidade louca. Não que a existência de tantos bares fossem o propósito de ela ter escolhido aquela rua para caminhar em um domingo à noite. A questão é que eles estavam apinhados de pessoas barulhentas que não lhe prestavam o mínimo de atenção. E era tudo o que ela queria ser naquele instante. Apenas uma garota de jeans, tênis e camiseta rasgada com um cigarro na mão atravessando com alguma dificuldade as calçadas infestadas por garotas de vestidos curtos e saltos altos. Uma garota que obviamente não pertencia àquele lugar. E provavelmente a lugar algum.
"Ah, mas pra mim, é indiferente. O que você preferia? Que eu fosse indiferente ou que eu te odiasse?". Nenhum dos dois, porra. Como você pode ser escroto a esse nível? Eu tomaria um tiro por você. Ou daria um tiro por você. Ou daria um tiro em você. Já não sei o que é mais provável.
É claro que "as coisas não funcionam desse jeito", como ele vivia dizendo pra ela. Contos de fadas são pra crianças, cinderela compulsiva. Você não foi embora à meia-noite, foi embora às cinco horas da manhã. Queria que aquela noite não tivesse acabado. Queria que aquela noite não tivesse existido.
Um cigarro a menos no maço, há quanto tempo ela estava descendo aquela rua? A amiga do outro lado da linha estava preocupada ontem à tarde. "Você sabe que não te faz bem. Por que esse tendência tão autodestrutiva? Tenta ser um pouquinho forte, por favor. Esse amor te faz tão mal, você merece coisa tão melhor, você não tem que sofrer assim". Ela só respondia com silêncio.
Talvez se ela tivesse ido embora à meia-noite e perdido o sapatinho de cristal, e não ido embora às cinco com as sandálias na mão e exultante de felicidade e culpa e prazer clandestino por estar sofrendo e por saber o fim desse capítulo como ela sempre soubera o fim de todos os outros capítulos em que o personagem principal era ele embora quem contasse a história era ela.
Não que ela se iludisse. Nem um pouco. O que ela gostaria de responder pra amiga, mas não tinha coragem de admitir em voz alta, é que preferia essa dor agridoce que ele trazia do que não sentir nada.
Um cigarro a menos no maço. E amanhã eu tenho que tá na porra daquele escritório às oito da manhã e ficar sorrindo praquela gente chata. Deixar a minha blusa rasgada de lado e colocar uma roupa social que com certeza as garotas dos vestidos curtos e saltos altos dos bares aprovariam. Aliás, onde estavam os bares? Ela tinha andado demais.
Achava que fazendo toda a cena cinematográfica ao descer aquela rua num domingo à noite conseguiria chegar a uma epifania qualquer e tomar uma decisão, mudar o rumo daquela história de clima doentio e pobre. Como se fosse no cinema. Ou nos livros. Ou nas músicas. "Mas as coisas não funcionam desse jeito", era o que ele vivia dizendo pra ela.